domingo, 3 de fevereiro de 2013

O convite para o fugitivo em duas chaves


Foi embora como um fugitivo. Não que tivesse cometido um crime, ou tivesse feito algo de errado. Não deixou nenhum rabisco sequer para justificar sua ausência. Então, como se explica sua súbita partida? Não era justo, mas ele não seria inconsequente. Haveria de ter um motivo. Era isso que ainda mantinha um fio de esperança no coração dela. Havia um motivo. Havia.

Muito ficou para trás, na verdade tudo ficou. Os cabides no guarda-roupa estavam cheios, as gavetas não estavam remexidas. Na escrivaninha tudo em ordem, desde as canetas aos blocos de papel. Nas estantes os livros não deixavam pista do paradeiro dele. A cama, arrumada. No criado mudo, só um copo d'água pela metade. A escova de dente estava no pote do banheiro. Nada fazia sentido. Nada explicava para ela o que lhe roubou a presença dele.

Com o passar dos dias a casa começou a rejeitá-la. Primeiro a cama a jogou para o sofá, depois o chuveiro secou e o espelhou embaçou permanentemente. Ela não conseguia abrir a geladeira sem se sentir uma visita, era muita cerimônia para descolar a borracha. Por fim, os corredores se estreitavam às costas dela enquanto andava de um cômodo para outro. Claramente a casa já não era lar. Para onde ela iria? Não podia sair dali enquanto não achasse as respostas para o coração.

Seus olhos procuravam em cada cantinho um detalhe que talvez tivesse deixado passar. Nos cabides, nas gavetas, na escrivaninha, nos livros, na cama, no criado mudo, no espelho... Quem sabe as respostas não estavam dentro de si mesma? A angústia era tanta, tinha medo de por o pé fora de casa e nunca ter resposta. A insegurança de ficar na casa que não sentia que era sua. Ela se concentrava e pedia aos olhos que procurassem de novo, com um pouco mais de atenção dessa vez. Cabides, gavetas, escrivaninha...

Adormeceu, sentada no chão ela encostou no móvel e o sono veio. O corpo estava cansado, doído como se a casa tivesse passado por cima dela. (Será que não teria passado mesmo?) Não foi o descanso que tomou conta dela, mas o sonho. E em sonho as respostas começaram a aparecer. Se tudo estava em ordem, ele não foi embora. Se deixou tudo para trás é porque voltaria para casa. Se tinha a intenção de voltar é porque não quis ir. Se mesmo assim foi é porque algo ou alguém o obrigou a ir.

A voz da lucidez trouxe para ela as respostas. Despertou. Abriu os olhos já umedecidos pelas lágrimas. Ele volta. Com a chama da esperança acesa novamente, ela se pôs a investigar o "que" ou "quem" era responsável pela partida dele. Achou primeiro o "porque", claro que era o riso. Ele incomodava por tirar a máscara dos outros enquanto despertava o riso. Assim o "quem" ficou evidente.

Com o coração mais leve ela pôde deixar a casa que já não era mais lar. Ela sabia que ele iria voltar, mas não podia esperar ali.  Lar era junto dele, podia ser em qualquer lugar, mas era junto dele. Fez as malas e escreveu um bilhete para quando ele voltasse: "É só me chamar que também volto para casa. Com amor, sua Ela." Só faltava mais uma coisa, como ele entraria em casa?

Fácil. Tinha um jeito. Deixou as chaves no galho da árvore que nasceu grudada na grade do quintal. Era o esconderijo deles. Quando ele chegasse teria a certeza de que ela deixara as chaves ali porque o queria de volta.

Algum dia aquela casa seria um lar para eles, juntos de novo.

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