Por Marina Alvarenga
Hoje o guizo não tocou. Ele acordou, não acordou? Sem guizo,
sem cor, sem nada, despido de roupa e alegria, ele se obrigou a encarar o dia.
E nada fazia mais tanto sentido. Mas nada fazia mais todo aquele sentido. A
roupa, ele reparou, estava em frangalhos. O ladrão andara lhe roubando as
peças, as polcas, a platéia.
Algo mágico acontecia. A cada novo assalto ou furto
escondido, um losango se soltava da vestimenta. Hoje ele estava nu. A linha que
juntava todos aqueles traços, fiapos de vida brevemente acumulada, se desfez no
mais puro e bonito nada. Esse vazio que a gente sente quando a cola dos
acontecimentos acaba. Esse vazio cheio de lágrimas, tão bonito de triste. Hoje
ele estava nu. Ele não tinha nada a oferecer. Seu melhor e seu pior se perderam
em algum momento entre o choro e a descostura.
Ele abriu o armário, desesperadamente. Lembrou-se que
decidiu esquecer que já tinha havido qualquer outra roupa ali. Só aquela
servia, em algum momento, só aquela passou a servir. E ele, crente, jogou todo
o seu resto fora. Decidiu ser só um, todo o tempo, dedicadamente um. As
prateleiras vazias o encararam de volta. Você vai ter que perdoar, caro
espectador, espero todos que entendam que o espetáculo não acontece sem
figurino.
Sobrou só ele, só os fatos, só os restos do que foi. Ele se
esforçou pra achar agulha, pra passar a linha, pra remendar. Ele está tentado,
mas, ao capturar de um colorido losango, o ladrão lhe rouba o próximo. E a
roupa novamente se desfaz em um monte de malhas repicadas. Eu penso que ele
está cansando, eu penso que ele está um pouco desesperado. Hoje ele não me
observa, porque hoje quem vê a triste cena está do lado de cá. Imagino o que
ele faria se soubesse que o ladrão sou eu. Não me leve a mal, eu só o faço
porque ele precisa aprender a colar com sentimentos; todo mundo sabe que linha,
somente, não presta. Nada é linear.
Hoje, a roupa não está. Hoje, atração não vem. Hoje, cada
retalho procura, incansavelmente, seu lugar de origem. Não há guizo que
substitua a trama dos tecidos, ele precisa de tempo para se reconstruir e da
caridade da trégua. Ficamos todos no aguardo da sua futura nova e mais bonita
indumentária. Hoje, riso não tem.
Por Camila Otim
Senhoras e senhores! Me permitam apresentar um número de
improviso, há de ser mais tocante do que o próprio gran finale. O que seguirá é
antes de tudo uma tentativa de salvamento, além de ser um espetáculo que enche
os olhos, devolverá a alegria a um rosto sofrido. Pode ser que ao final eu já
não esteja aqui, é um risco que se corre no resgate: o socorrido e o
salvador podem se perder por completo.
As acrobacias serão realizadas com tamanha velocidade que
minhas cores se confundirão, entre um salto e uma cambalhota se perderão pelo
ar. Serei despido das cores para que o socorrido as receba. Estejam atentos, as
cores salvarão seus sentidos. Continuarei com o número, seguirei acelerando as
piruetas, até que os losangos deixem a malha que me veste. Os losangos
separarão as cores que desordenadamente pairam entorno do socorrido.
A essa altura o número chegará em um ponto delicado: a
malha, como uma segunda pele, abandonará meu corpo para cobrir aquele que jaz
intocado até mesmo pelo vento. O socorrido sentirá como um abraço que aquece,
protege e conforta. E por ser o salvador, terei de lidar com o ar gélido até
o fim do espetáculo. Para que o salvamento se complete, realizarei mais uma
sequência de saltos e cambalhotas, sentirei uma leve dor por ver meus guizos
tilintarem em direção ao socorrido. Assim um arlequim voltará a escrever poesia
no ar. Estará salvo.
E o número se completa. Já não serei eu, sem cores, sem
forma, totalmente descoberto, mas o salvamento será um sucesso. Um arlequim em
socorro do outro. Vos conto em detalhes tudo que se sucederá no palco sem medo de roubar a graça do espetáculo, o faço para que não se assustem e ao final sejam meus
salvadores. Preciso do vosso riso para reconstruir o que é mais que um figurino
para mim, é o que dá sentido às acrobacias, é algo intrínseco a mim, é minha alma estampada pelo corpo.