quarta-feira, 17 de abril de 2013

O diálogo do improviso em cores




Por Marina Alvarenga

Hoje o guizo não tocou. Ele acordou, não acordou? Sem guizo, sem cor, sem nada, despido de roupa e alegria, ele se obrigou a encarar o dia. E nada fazia mais tanto sentido. Mas nada fazia mais todo aquele sentido. A roupa, ele reparou, estava em frangalhos. O ladrão andara lhe roubando as peças, as polcas, a platéia.

Algo mágico acontecia. A cada novo assalto ou furto escondido, um losango se soltava da vestimenta. Hoje ele estava nu. A linha que juntava todos aqueles traços, fiapos de vida brevemente acumulada, se desfez no mais puro e bonito nada. Esse vazio que a gente sente quando a cola dos acontecimentos acaba. Esse vazio cheio de lágrimas, tão bonito de triste. Hoje ele estava nu. Ele não tinha nada a oferecer. Seu melhor e seu pior se perderam em algum momento entre o choro e a descostura.

Ele abriu o armário, desesperadamente. Lembrou-se que decidiu esquecer que já tinha havido qualquer outra roupa ali. Só aquela servia, em algum momento, só aquela passou a servir. E ele, crente, jogou todo o seu resto fora. Decidiu ser só um, todo o tempo, dedicadamente um. As prateleiras vazias o encararam de volta. Você vai ter que perdoar, caro espectador, espero todos que entendam que o espetáculo não acontece sem figurino.

Sobrou só ele, só os fatos, só os restos do que foi. Ele se esforçou pra achar agulha, pra passar a linha, pra remendar. Ele está tentado, mas, ao capturar de um colorido losango, o ladrão lhe rouba o próximo. E a roupa novamente se desfaz em um monte de malhas repicadas. Eu penso que ele está cansando, eu penso que ele está um pouco desesperado. Hoje ele não me observa, porque hoje quem vê a triste cena está do lado de cá. Imagino o que ele faria se soubesse que o ladrão sou eu. Não me leve a mal, eu só o faço porque ele precisa aprender a colar com sentimentos; todo mundo sabe que linha, somente, não presta. Nada é linear.

Hoje, a roupa não está. Hoje, atração não vem. Hoje, cada retalho procura, incansavelmente, seu lugar de origem. Não há guizo que substitua a trama dos tecidos, ele precisa de tempo para se reconstruir e da caridade da trégua. Ficamos todos no aguardo da sua futura nova e mais bonita indumentária. Hoje, riso não tem. 

Por Camila Otim

Senhoras e senhores! Me permitam apresentar um número de improviso, há de ser mais tocante do que o próprio gran finale. O que seguirá é antes de tudo uma tentativa de salvamento, além de ser um espetáculo que enche os olhos, devolverá a alegria a um rosto sofrido. Pode ser que ao final eu já não esteja aqui, é um risco que se corre no resgate: o socorrido e o salvador podem se perder por completo.

As acrobacias serão realizadas com tamanha velocidade que minhas cores se confundirão, entre um salto e uma cambalhota se perderão pelo ar. Serei despido das cores para que o socorrido as receba. Estejam atentos, as cores salvarão seus sentidos. Continuarei com o número, seguirei acelerando as piruetas, até que os losangos deixem a malha que me veste. Os losangos separarão as cores que desordenadamente pairam entorno do socorrido.

A essa altura o número chegará em um ponto delicado: a malha, como uma segunda pele, abandonará meu corpo para cobrir aquele que jaz intocado até mesmo pelo vento. O socorrido sentirá como um abraço que aquece, protege e conforta. E por ser o salvador, terei de lidar com o ar gélido até o fim do espetáculo. Para que o salvamento se complete, realizarei mais uma sequência de saltos e cambalhotas, sentirei uma leve dor por ver meus guizos tilintarem em direção ao socorrido. Assim um arlequim voltará a escrever poesia no ar. Estará salvo.

E o número se completa. Já não serei eu, sem cores, sem forma, totalmente descoberto, mas o salvamento será um sucesso. Um arlequim em socorro do outro. Vos conto em detalhes tudo que se sucederá no palco sem medo de roubar a graça do espetáculo, o faço para que não se assustem e ao final sejam meus salvadores. Preciso do vosso riso para reconstruir o que é mais que um figurino para mim, é o que dá sentido às acrobacias, é algo intrínseco a mim, é minha alma estampada pelo corpo.