terça-feira, 17 de dezembro de 2013

Espetáculo invertido: o verso de uma receita

Liza Lou

Respeitável público! Acomodem-se em seus lugares, mais um espetáculo improvisado se dará no palco. Sendo improvisado nada impede que seja do avesso, que o palco se renove, que a platéia se surpreenda, que risos e guizos!

Acompanhem com o olhar a mudança de cenário. Deixemos o palco tradicional, o número de hoje transborda o espaço, se espalha para além das coxias, do camarim, toma lugar onde o próprio é pensado, preparado, testado, trabalhado e finalizado. Os convido a degustar quando tudo estiver pronto e os desafio a se deliciarem desde o início...

Primeiramente, separemos os sabores e os aromas, a textura e a cor, tudo deve ser precisamente medido. Os olhos do público tem o paladar aguçado... O sal é apenas para realçar o sabor, não deve ser o ingrediente principal. Se cítrico, que não seja demais ao ponto de juntar água atrás da orelha e lembre-se que o sabor está na casca. Se doce, melado só na calda, mesmo que for salgado ponha uma pitada de açúcar para dar cor.

Para ficar avermelhado, molho de tomate. Para esverdeado, polpa de espinafre. Se a preparação for pesada, quatro quartos no camarim. Se as acrobacias forem leves, movimentos envolventes, se não envolvem não desenvolvem o riso. Se for quebrado em atos trabalhe rápido para manter a unidade.

Quando as falas escorrem pelos dedos não construa um monólogo, fica mais fácil esticar as idéias dentro de um diálogo e para finalizar, o recheio pode ser meloso ou até picante, depois só enrolar e forno. O número não pode ser servido em molho feito sopa, o público prefere algo mais consistente, tenha paciência, deixe o que dilui reduzir, evaporar.

Todas as temperaturas favorecem o espetáculo, mas fique atento para adequá-las. Apresentações quentes vão bem com o público impalpável, porque são capazes de tocar seu coração endurecido. Os de serviço gelado são ideais para os que desejam refrescar o dia. Já os congelados são capazes de anestesiar o público que carrega feridas não cicatrizáveis.

Não desanime se ao final o espetáculo não tiver sabor espetacular, apresentar-se pode ser frustrante, o resultado depende de pequenos detalhes. Se a idéia não tiver fresca tudo pode talhar. Se colocar demais passa do ponto. Se esperar de menos racha no forno. Nem tudo se perde. Quando gelifica antes da hora é só aquecer levemente, sem ferver. Se talhar aqueça ou esfrie, se ainda assim não resolver... seque!

Mas o segredo que dá estrutura ao espetáculo, o segredo que de fato dá vida ainda não contei. E não o fiz até agora para que não se dissolvesse nos outros segredos. Esse sim é o ingrediente principal: só há espetáculo quando há público. É o público que dita a dinâmica no palco, são os risos que dão graça aos guizos, são as lágrimas que dão profundidade ao drama. São as palmas que motivam o nascimento de mais espetáculos. É ao público que o Arlequim se curva em agradecimento.

E hoje, dia do espetáculo ao avesso, as palmas partem do palco para a platéia!