segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

Audácia no palco, deleite na plateia

Vânia Medeiros

Admirável público! Que o improviso continue a construir espetáculos incomuns! Que o palco se revele em um ângulo surpreendente. Que não seja um teatro preso a quatro paredes, nem um palanque na praça. Que ele não tenha limites. Que seu espaço seja moldável à apresentação. Que seu infinito seja assegurado no aqui e no ali, no agora e no para sempre. Que seja livre de toda mesquinhez! Que a luz o ilumine, as cortinas não o escondam e risos da plateia aos guizos no palco!

Ver o espetáculo do lado direito e do lado avesso pode causar a impressão de que ele é uma estrutura dupla, mas não é. Existe um lado íntimo. Justo o lado que permite que os outros dois criem e ousem no palco. Revelar sua intimidade não compromete sua integridade, desnudar-se revela o que é próprio de si, releva o que lhe é. Ser é absoluto. 

Cada acrobacia é possível porque no mais íntimo de si o Arlequim é livre. Nada o prende, nada limita seus movimentos. Assim seu corpo inscreve no ar as mais belas e desafiadoras poesias. As cambalhotas são leves porque nada trava seu pouso, ele as realiza sem que nenhum emaranhado o envolva. Por experimentar tamanha liberdade ele não exita. Cada losango que lhe cobre a pele é um retalho de coragem costurado com fios de bravura.

Acomodem-se! Ele se lançará a cada movimento sem reservas, talvez a beleza maior não seja a acrobacia em si, mas a serenidade e a segurança que ele exala ao dar início a um movimento sem ter calculado seu pouso. Palmas! Risos e guizos! Ele tocou o chão com a leveza de sua coragem! 

sexta-feira, 21 de novembro de 2014

Improviso Contábil: Razonetes de um Arlequim



E não me conte se falta muito tempo. Permita-me a espera, que eu não saiba se teus dedos tocaram minha pele por não se controlarem de desejo ou por um movimento desajeitado, que eu me perca no crédito/débito das contas e a minha razão não tenha certeza de onde veio a atenção que te roubei, que nossos olhares se inflamem ao se encontrarem, mas que o seu rastro seja a incerteza do que se passa.

Não conto o tempo. Não me conte, sou feita de letras, não tenho valor fiscal. Não é por covardia, não me isento, é pela audácia de compreender cada débito da sua conta creditado na minha, é pela coragem de apreciá-los no silêncio de meu labor sem ter visto a prova de que estamos em partidas dobradas. Não se apresse, completemos preguiçosamente os razonetes...

Ficamos assim enquanto coubermos no tempo que falta, e quando não coubermos mais, transbordaremos... Nesse momento nem com auditoria será possível compreender como geramos saldo tamanho com receitas tão simples. Não haverá quem nos condene porque no final a Demonstração do Resultado do Exercício será um fato. O lucro está no caixa. Meus risos para teus guizos. 
  

OS: Reparo nos fios de vida do palco





DELL'ARTE SOLUÇÕES EM RISOS E GUIZOS S/ LIMITES

Ordem de Serviço Nº 8/1812 

Cliente: Arlequinal
Endereço: Palco do Improviso Nº 29
Telefone: (meia luz) três três losangos - quinze tilintares

Descrição: se esvai do meu corpo um fio de vida. A gélida pele, que agora se estende sobre mim, pede um toque de mãos macias e abrasadoras que ativem o pulsar da minha existência. Que o calor envolva meu corpo então cercado pelo frio vento.
Onde o escarlate do sangue era pleno agora é vazio. Onde não havia escassez, agora é espera.

Relatório final: deixando o corpo, o fio transbordou seu suspiro de vida e feriu a existência que lhe tocava.
Uma nova vida circula, pulsa uma história curada. Equilibrista nos velhos fios ela caminha a passos resolutos.

TOTAL DO SERVIÇO: R$ Palm,as

segunda-feira, 12 de maio de 2014

À minha plateia de um espectador só




          — O que te falta Arlequim?
          Finalmente, com a plateia completa o espetáculo tende a seu ápice de beleza. Tende... mas ainda não o alcançou. Certo é que a plateia de um espetador só está de fato completa.
          — Se não te falta, o que se passa Arlequim?
          O espetáculo que antes se dava coberto por retalhos coloridos, agora é projetado violentamente em estilhaços de um espelho. Cada fragmento de losangos imperfeitos me penetra a carne, reveste minha pele de reflexos e sangue. Cada gota em seu vermelho vivo reproduz o que o espelho, agora sem unidade, revela: minha realidade invertida.
          A iluminação é montada na esperança de que como o sol alcança a lua e esta o reflete, também o público alcance os fragmentos de espelho e estes ao serem iluminados devolvam a luz como reflexo ao espectador.
          Agora a hesitação toma conta do teatro, o espelho com toda sua pureza e sinceridade expõe o ser sem máscara, palco e plateia se enchem de medo ao conhecer a si próprios, mas a alma dos dois anseia avidamente por se ver refletir no espelho sem mancha, nesse que é o outro. Na confusão que se instaura, o que reflete e o refletido é palco e plateia, plateia e palco. Nessa via de reflexo duplo a verdade se faz personagem no palco.
          — Arlequim?
          (Silêncio no palco)
          — Não desfaleça Arlequim, inscreva no ar tuas poéticas acrobacias, ainda que te cause dor, inscreva as. A plateia de um espectador só já está completa, logo o espelho côncavo se reconstituirá e comunicará o calor dos raios aos corpos no teatro. E então, tu arlequim e tua plateia se abrasarão num aconchego sublime
          — Arlequim?

          Risos e Guizos!