domingo, 5 de maio de 2013

Do caminhante ao grito de ousadia


Fotografia Jacson Barth

As cidades são tomadas de movimento. Seus habitantes seguem um ritmo acelerado, atropelam os dias sem questionar o calendário. É uma existência tão fugaz e superficial, talvez pela velocidade em que se dá ninguém sinta como dói o ser raso, a falta de profundidade não é percebida. Não é um incomodo.

Em um breve momento de desaceleração da minha rotina vi uma cena curiosa. Da janela do meu escritório no sétimo andar, tomando uma xícara de café bem forte reparei um jovem que atravessava a rua. Pelas roupas e a mochila nas costas julguei ser um estudante. Tinha um andar lento, arriscaria em dizer que não era de cansaço, mas de desanimo, ou posso estar totalmente enganado, podia ser que ele tinha alguma dificuldade para andar.

O caminhante estava chegando na parada de ônibus, não posso precisar para qual lado da cidade ele pretendia ir, aquela parada era o ponto que em as mais diversas linhas se encontravam. Por algum motivo só sentia duas coisas diante do jovem: uma extrema curiosidade e o amargo do café na boca. Meu olhar continuou acompanhando cada movimento dele. Com uma certa frequência ele consultava o relógio, era um de pulso poderia ser digital ou analógico os sete andares me tiravam os detalhes. Imagino que ele estava ansioso, não estava atrasado, seu passo lento podia confirmar isso.

Quanta especulação! A minha curiosidade não me deixava. De onde ele vinha? O que ele sentia? Seria o amargo do café? Acredito que nunca saberei. Ele fitava fixamente um ponto, algum tempo depois ele seguiu em frente e entrou em um táxi. O caminhante tinha me abandonado. A mim, a minha curiosidade e uma xícara de café pela metade. Me voltei para o ponto que ele olhava. Ah! Era o dia para as imagens atiçarem minha curiosidade!

O ponto que o caminhante olhava era mais intrigante do que ele mesmo. Tenho a sensação de que o jovem era apenas um instrumento para que me desse conta daquele ponto. Para compreender o ponto em sua totalidade era preciso compreender o que estava em volta. Era um ponto situado em um lugar de passagem. Passavam carros, táxis, caminhões, ônibus, por baixo da terra tinha o metrô, alguns metros dali um pier cheio de pequenas embarcações e claro, as calçadas estavam cheias de caminhantes.

Sem mover o olhar eu via uma construção antiga que abrigava uma feira e prédios modernos, altos e imponentes. Era um lugar de encontros. Da cidade velha com a nova, de todos os passantes, de tantas vidas. Em meio a tudo isso tinha um ponto. Um ponto que era um grito. Um grito de ousadia. A existência daquele ponto justo nesse contexto era um gesto desafiador.

Em cima da parada de ônibus nascia uma plantinha. Esse foi um berro para meus ouvidos e um incomodo para meus olhos. Como poderia? Que condições ela tinha para existir ali? Tinha uma pequena lógica, a água do ar-condicionado  caía em cima da parada, uma camada de lodo tinha se formado. Naquele momento entendi que a existência de cada ser passava por aquela lógica. Era preciso ousar para ser por inteiro. Ser pela metade era covardia, comodidade.

Minha curiosidade tinha se saciado finalmente. Meu café tinha acabado, mas o amargo ainda estava na boca.  A minha existência pedia um grito de ousadia como o da plantinha. Dei um grito, daqueles que saem do pulmão. Precisava encontrar a vida que pulsava por baixo da minha pele, precisava chegar no mais profundo do que eu era. Gritei para acordar minha existência adormecida.

Meus colegas logo apareceram na minha sala, estavam preocupados. Respondi que há um tempo estava procurando algo muito importante, algo que transformaria meus dias e finalmente tinha encontrado. Estava comemorando, só isso.

Tinha me encontrado por inteiro, melhor que isso: tinha me assumido por inteiro.


Fotografia Jacson Barth