sexta-feira, 25 de dezembro de 2015

Barro. Existir. Anjo. Ela.



Arlequim, seja hoje a plateia. Hoje improsivo eu o espetáculo.
Risos e guizos!
Registro uma declaração tardia. Demorei a ter consciência do que sou feita. Daquilo que me compõe e não vejo, não sinto, mas sou. Não há negativa que me dê álibi para a fuga. Sou fruto de várias combinações, o que me compõe é o que sou.
E sou barro. Pó com água. Sou neta de uma mulher forte, uma que sofreu e ainda assim conservou o amor. Que com a sua generosidade garantiu minha existência. Que apesar de mim me amou e se preocupou comigo. Até o fim me amou.
Hoje, me restou teu filtro de barro. Que é pra eu sentir o gosto da minha existência a cada gole. Que é pra eu lembrar de onde vim e pra onde vou. Que é um presente seu. Que é pra eu lembrar que sou composta de uma mulher forte capaz de amar.
Hoje, cuido para que o filtro não seque. Que o barro esteja vivo. Que o que me compõe nunca morra dentro de mim.
Sou neta de uma mulher que tinha nome de mãe, que tinha nome de anjo, que me tinha amor. Hoje, ela é um anjo e só espero que ela saiba que tenho amor por ela.

segunda-feira, 14 de dezembro de 2015

Ode da criatura ao criador



Marinho, hoje o espetáculo é fruto de teu Arlequim, levante-se, ao que seguirá só cabe um palco peregrino, acompanhe cada ato atentamente para encontrar a chave de leitura, entre eles recomponha a respiração se o ritmo estiver muito intenso, aviso que o empenho será recompensado. A chave, a que liberta ao abrir, a que protege ao fechar. Tão pequena, no espetáculo guarda o mistério e confere aos que a detêm descobrir o que lhe cabe ocultar. Risos e guizos, a leitura da chave!

primeiro ato
a cidade

Te convido a trair por três atos tua amada Pauliceia, numa primeira caminhada pelas ruas de Sabre seu coração será conquistado, permita-se amá-la. Cada rua encerra um segredo, mas não velados, se exibem nas calçadas, nos muros, no asfalto, nas esquinas, nas encruzilhadas, como não amar uma cidade que não se esconde? Que se deixa conhecer? Marinho, prepare-se, serás parte da leveza, da beleza, da miséria, da violência, da sujeira, da fragilidade, das lágrimas, dos risos e guizos que fazem de Sabre uma cidade.

Os lugares da cidade são as pessoas, Sabre é de uma existência composta, como uma malha de retalhos, unindo os fragmentos coloridos é que ela é. Ela é de uma beleza estonteante, de uma organização pensada, de uma vivacidade pulsante, de um acolhimento aconchegante. Se colore do branco ao preto, sobrevive às quatro estações, farta, é inteira. É ela. Só havia de ser ela. E ela nunca aconteceu duas vezes.

segundo ato
a dor

Marinho, se há alguém capaz de amar Sabre sem se escandalizar é você. Apertemos o passo, agora não só veremos a cidade, mas seremos parte dela. Essa é uma cidade de constante movimento, e intenso movimento. Ainda que seja inteira não é completa, é cheia de limitações, carrega muitas feridas abertas, seus habitantes garantem que não se fechem, eles são o sangue que escorre, eles com sua mesquinhez, sua covardia, traições, ódio, raiva, assassínios, e um vazio enorme.

Estamos diante de uma cidade doente, ela mesma se fere e cura, cada ferida é preenchida com um pouco mais dela mesma, começa o processo de cicatrização, quando a cicatriz está quase completa ela se fere novamente em seus movimentos. Aqui as cicatrizes são raras e o maior desejo de Sabre.  Ela é dor, seus movimentos são para fugir da dor e dói porque se movimenta, a linha entre causa e efeito é tênue. Essa bela cidade corrompida espera por um heroi. Ainda que precise de ajuda não se deixa sucumbir, intensifica os movimentos, confia à velocidade a vitória nos combates.

terceiro ato
o movimento

Não há medo ou cansaço que a faça recuar, é com leveza que ela se mantem firme na opção por existir. Ela fecha os olhos e corre, correr é intrínseco à ela. Movimenta a dor, cada pedacinho que dói grita que está vivo, e por essa vida que se faz ouvir vale continuar a corrida. Então corre para fugir do que causa a dor para não abrir mais feridas, corre em direção ao que causa a dor para afrontar o opressor, corre com o que causa a dor porque? Porque na sua covardia faz pose de coragem. 

Marinho, a cidade está em frangalhos, mas não derrotada. As luzes passam rápido, as pessoas não têm tempo, o sono é curto, o dia acelerado, corre, corre Sabre. Ela está cheia de doenças, vilões, belezas e pequenos herois, precisa ser salva. E será. A salvação mais confortável é que chegue um grande heroi, mas ela não pode esperar, não lhe falta coragem para continuar a correr, ela corre para que um dia o movimento seja uma cura maior que a feridas. A cidade estampará suas cicatrizes como troféu, cada uma delas contará a história de uma batalha, cada uma sorrirá para o opressor vencido.

Marinho, agora sabes o que a faz sofrer? Sim?! Então, desde já tu a amas... 

Risos e guizos!


(Ah... se esse fosse o início de um diálogo! Se pudesses me responder... Na impossibilidade, sou tomada pela gratidão ao bálsamo arlequinal que me deste.) 

segunda-feira, 6 de abril de 2015

Flamas da madrugada



Respeitável público, hoje apresento um espetáculo em chamas. Minha existência arde desde a alma até a pele de losangos coloridos. Deixem seus olhos acompanharem o tremular das chamas, deliciem-se com o intenso da cor e da temperatura. E não se preocupem, a voracidade com que o fogo me consome não me fere, não me esgota e alcançará teus olhos, mas não se alastrará pela plateia, o fogo se limita ao palco que hoje é meu corpo.

Pus-me a caminhar noite a dentro, caminhei pelas suas horas. Na madrugada atingem o ápice de sua frieza. Tomado pelo gélido ar desejei tocar-te. As chamas me tomavam todo o corpo, teu ar me confundia os sentidos, ora aliviava o calor que emanava de mim, ora me fazia ansiar pelo aconchego das temperaturas elevadas. Nas ruas desertas, sob um céu que não cheguei a notar, quis te proteger com minha fonte de calor.

Com urgência quis envolver tua gélida superfície até penetrar com meu calor a teu instante mais íntimo, mais frio. Aquele que poucos notam, que não se atentam, que não se preocupam. A chama que brotava dentro de mim transbordava e compreendi que seu movimento apontava na tua direção.

Jamais te aqueceria, não que não pudesse, mas tua natureza não mudaria seu traço mais próprio. Da mesma forma, minhas chamas jamais se apagariam. Seríamos capazes de sentir um ao outro na confusão de igualmente sentir a nós mesmos.

Com avidez precisava tocar tua beleza, justo a que desconheces. Jaz agora meu corpo em chamas envoltas no teu mais gélido instante. 

Amores Contidos



Senta-te ao meu lado, deixe que te faça uma pergunta com meus olhos fitos na tua negra máscara. Leve-me em tuas acrobacias para ouvir no tilintar de seus guizos a resposta... Quantos amores caberiam em um parque? Haveria espaço? Quantas voltas poderia caminhar? Haveria tempo? Quantas manhãs? Quantas tardes? Quantas noites disponíveis?  Seria seguro? Quem ameaçaria o cultivo de amores no parque? 

Suas dimensões são mistério para mim. Mas sei que não esgotei sua capacidade, quanto me resta? Nenhuma fria manhã recém nascida negou meus amores, nenhuma tarde ensolarada e nenhuma noite deixou de se alongar para abrigar meus amores. Até mesmo os amores que não chegaram a teus portões foram abrigados.

Fosse ao som de harmoniosa melodia. De reveladoras confissões. De uma grande adrenalina seguida de um salto desajeitado e um delicado movimento rasteiro. De passos tranquilos. De corridas ousadas. De silêncios. De pele tocando a outra por descuido ou por um movimento calculado, ou ainda, um toque por um movimento incontrolável. Carinhosamente, cada um foi recebido como único, como se tivesse todo espaço disponível para preencher.

Com generosidade o parque se ajusta, hoje depois de fazer caber tantos amores volto ao primeiro. Regresso a meu primeiro amor, o que numa tranquila e longa caminhada segura minha mão, protege meus passos de cada pensamento que ameace a tranquilidade do passeio. Assim, cada passo que dou não calcula seu destino, mas se deixa guiar, se entrega a surpresa.

Parque, revele meus amores para que eu possa dar a mão ao meu primeiro, retorno a ti como nos primórdios de minhas caminhadas, mas com todo o chão caminhado.

Arlequim? (Tilintar de guizos)