segunda-feira, 12 de agosto de 2013

Fecham as cortinas

Gary Benfield

Permita-me querido público que me retire por alguns instantes do palco. Já faz um tempo que me apresento e é comum que o artista comece a esquecer de si mesmo após longas horas vivendo na pele de um outro ou carregando na pele um outro. Hão de desculpar-me a confusão, mas é que meus sentidos me traem e já não sou capaz de discernir com clareza o que realmente se passa.

Para me apresentar nos últimos meses vaguei pelas ruas de uma cidade com seu maior amante, a conheci inclusive do avesso. Isso era preciso para que eu visse materializado diante de meus olhos que o arlequim pode se fundir com aquele que usa sua máscara e que a máscara assume os traços de quem a usa. Precisei entender os passos dessa fundição para que ao me apresentar diante da plateia esse processo estivesse completo.

Ao ver o mais íntimo da cidade, me apaixonei. A cidade e o arlequim não compunham uma dualidade, mas eram um só. Um passou a ser tão intrínseco ao outro que se apaixonar pela cidade era se apaixonar pelo arlequim, desejar o arlequim era desejar viver no palco, assim como a cidade, essa cumplicidade máxima. Mas o palco é exigente, para que a apresentação no palco seja sincera ela deve nascer antes das coxias, antes do camarim, ela toma lugar na vida do artista desde o momento que ele desperta.

Assim alcancei o ser-um-só com o arlequim. Sem reservas deixei que ele invadisse tudo aquilo que é meu, meu dia, minha noite, meu caminhar, meu falar, meu pensar, meus gestos, meu riso, meu vestir, meu amar, meu ser. Experimentei apresentar com sinceridade meu personagem, subo ao palco carregando por inteiro um só ser composto por dois. Mas eis que entre o riso e os aplausos me pergunto quem é esse novo ser? Me assusto por não saber responder.

Por isso me retiro do palco, é crucial que eu sabia quem sou agora e como lidar com o novo. Não me arrependo do que me tornei, mas aceito o desafio desse desconhecido. Não sei separar o que sou do arlequim, se é que ainda existe essa divisão. A verdade é que não me vejo separada desse arlequim, já me acostumei com sua presença constante, me agarro a sua companhia. Somos um, hoje sou eu e mais um outro também. Preciso compreender as implicações desse outro no que eu era só.

O fato é que apesar da visão turva que tenho de mim mesma, o que vejo me agrada. É com a mais pura alegria que mergulho nessa confusão para descobrir o que meu eu passou a ser com o outro. Senhoras e senhores, por tudo isso peço que aguardem pacientemente o próximo número, o espetáculo tende a ser deslumbrante! 

O arlequim não não vai a lugar nenhum, ele não só é inteiramente meu como passou a ser eu mesma.